terça-feira, 14 de novembro de 2023

 

HOMENAGEM A GONÇALVES DIAS


GONÇALVES DIAS E OS GONÇALVES DE TODOS OS DIAS

Maria da Assenção Lopes Pessoa


“Minha terra tem palmeiras, /onde canta o sabiá,

as aves que aqui gorjeiam, /não gorjeiam como lá...”

 

(Fragmento de Canção do Exílio, Gonçalves Dias)


Esses versos com efeito mágicos, reafirma que esse poeta se permite para todas as idades, gerações e descendências, por certo atemporal, como é a vida romântica de um exilado em sua própria essência.

Todos nós sabemos da importância de Gonçalves Dias (1823-1864) para a geração romântica de outrora e para a contemporaneidade.  Maranhense com frágeis anseio saudosista, um naufrágio, foi o protagonista do encerramento precoce de sua história. Poeta de romântico indianista, nacionalista, tendo como ícone a Canção do Exílio (1843), a poesia mais ditada, mais imitada, mais parafraseada de todos os tempos. Poesia emblemática de feição amorosa, onde se percebe a idealização da figura feminina intrigante desse período de sua existência poética e histórica, além da expressão de um nacionalismo, um orgulho exagerado por sua terra natal, onde exalta a sua exuberante natureza.

Inserido em uma escola estética com característica sentimental indócil, a individualização e idealização do amor-perfeito, os Gonçalves Dias atuais ainda buscam esse sentido para suas poesias. Poetas de diversos estilos, seguidos por diversos autores reconhecidos, ou anônimos, que certamente poderiam ser os mais lidos e apreciados pelos mais diversos tipos de leitores. Nos Gonçalves de todos os dias, percebem-se outros poetas e romancistas a transcender o espírito nostálgico do romantismo brasileiro.

Castro Alves, por exemplo, o poeta dos escravos, o principal poeta da Terceira Geração desse entoar Romântico, retrata, sob o efeito do lírico-amoroso, a influência ultrarromântica da poesia vivida por Gonçalves Dias.  

A duas flores

São duas flores unidas, /São duas rosas nascidas

Talvez no mesmo arrebol, /Vivendo no mesmo galho,

Da mesma gota de orvalho, /Do mesmo raio de sol.

[...]

Unidas, bem como os prantos, /Que em parelha descem tantos

Das profundezas do olhar... /Como o suspiro e o desgosto,

Como as covinhas do rosto, /Como as estrelas do mar.

[...]

(Espumas Flutuantes)

Álvares de Azevedo, outro poeta da 2ª geração romântica brasileira, nos seus versos de A Lagartixa, – “Tu és o sol e eu sou a lagartixa” – a figura do amante idealizado, compara o sujeito lírico a uma lagartixa, fugindo o nobre poeta do “eu” lírico, padrão romântico heroico e virtuoso, ao mesmo tempo, em que o representa na forma animal.

A Lagartixa

A lagartixa ao sol ardente vive /E fazendo verão o corpo espicha:
O clarão de teus olhos me dá vida, /Tu és o sol e eu sou a lagartixa.
[...]
Vale todo um harém a minha bela, /Em fazer-me ditoso ela capricha...
Vivo ao sol de seus olhos namorados, /Como ao sol de verão a lagartixa.

Casimiro de Abreu, também da 2ª geração romântica, autor de As Primaveras, no poema Meus Oito Anos, descreve uma nostalgia bucólica, marcada pela simplicidade e por uma espontaneidade que se reporta ao seu patriotismo e sua idealização amorosa, seguido do pressentimento da morte. Os poemas de Casimiro apresentam-se num contexto de fuga de um presente inquieto, atordoado, atendo-se ao passado, como único refúgio seguro e feliz a lhe proporcionar uma singular existência configurada na poesia de fluido gonçalvino.

Meus Oito Anos

"Oh! que saudades que eu tenho /Da aurora da minha vida, /Da minha infância querida

Que os anos não trazem mais! /Que amor, que sonhos, que flores, /Naquelas tardes fagueiras

À sombra das bananeiras, /Debaixo dos laranjais!

 

Como são belos os dias /Do despontar da existência! /– Respira a alma inocência

Como perfumes a flor; /O mar é – lago sereno, /O céu – um manto azulado,

O mundo – um sonho dourado, /A vida – um hino d’amor!

[...]

 

A poesia romântica de Gonçalves Dias se entranha na poesia dos poetas brasileiros, com recusas por vezes intensas, por vezes amarguradas, solitárias, entristecidas. Mas, ainda assim, é o gênero mais preferido dos leitores. Será por que somos eternos e irrecuperáveis românticos? Os versos do romantismo sempre povoam o nosso célebre imaginário, deixando marcas indeléveis de nossa memória afetiva na nossa história e na história da literatura nacional.

 

Os Gonçalves de todos os dias, estão nas calçadas recitando os poemas da vida, dentro dos escritórios, em salas com ar condicionado ou ao ar livre. Desde o período romântico até os dias modernos contemporâneos temos uma fila de poetas cuja missão é levar esses estilos de vida, aos apreciadores da língua e da literatura portuguesa-brasileira. De Gonçalves Dias a Paulo Leminski, no seu jeito irreverente de se comunicar por meio da poesia, temos um leque de autores que, imensuravelmente excêntricos, descrevem, além do clássico romantismo, toda a diversidade poética presente na natureza e na vida. Destaco aqui Chico Buarque de Holanda, Maria Firmina dos Reis, Fagundes Varela com exemplo desses contrastes na sua forma de falar dos sonhos, reivindicar direitos e respeito, além de expressar todas as formas do amor e de amar.

O romantismo de Chico Buarque e Tom Jobim transborda no amor pelas descrições sofridas no sujeito em transformações, aportando na modernidade, viajando nos campos da sexualidade, identidade e liberdade. O amor transborda pelos poemas de Chico Buarque, nas suas músicas e livros. Na canção Sabiá apresenta uma das releituras e citações de Canção do Exílio.

Sabiá

Vou voltar /Sei que ainda vou voltar /Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá /Que eu hei de ouvir /Uma sabiá

Vou voltar /Sei que ainda vou voltar
Vou deitar à sombra de uma palmeira /Que já não há
Colher a flor que já não dá /E algum amor talvez possa espantar
As noites que eu não queria /E anunciar o dia
[...]

 

          Maria Firmina dos Reis (1822-1917), maranhense, contemporânea precursora do romantismo afrodescendente, traz na sua escrita a luta silenciosa abolicionista, antes mesmo de Castro Alves. Úrsula, sua obra mais completa, reflete exatamente o empoderamento da mulher negra na nossa literatura, traz a negritude para o centro, o sujeito protagonista de sua história, com a sua própria linguagem e experiências.

 

Meteram-me a mim e a mais trezentos com­panheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras”. (Úrsula, 1859)

 

Escritor e boêmio carioca, Fagundes Varela (1841-1875), foi de uma geração ultrarromântica. Assumindo um tom bucólico, suas composições se focam em descrever a natureza. Presente identificada por muitos dos seus pares contemporâneos, o poeta evidencia seus sentimentos mais negativas, como a melancolia, o pessimismo, a obsessão pela morte, a obstinação em fugir da realidade. Ainda assim, sua lírica demonstrava temáticas políticas e sociais, fatos que o aproximavam de gerações futuras. Varela, o poeta de transição, assimilou traços do Romantismo em sua mais diversas fases. Cântico do calvário, é um poema emocionante, escrito em memória de seu filho de 11 anos, que está no livro Cantos e Fantasias (1865), o mais conhecido.

 

Cântico do calvário

[...]

Que belos sonhos! Que ilusões benditas! /Do cantor infeliz lançaste à vida,
Arco-íris de amor! Luz da aliança, /Calma e fulgente em meio da tormenta!

[...]

 

Machado de Assis (1839-1908), foi um autor com um arcabouço de influência romântica, eterna, como mostra suas obras Ressurreição (1872), Histórias da Meia-noite (1873), A Mão e a Luva (1874).

 

Um nome pouco lembrado deste período foi a professora, poeta Narcisa Amália de Campos (1852-1924), primeira mulher jornalista desse nosso país, vasto de intelectualidades femininas anônimas e esquecidas ao longo do tempo. Com forte consciência social, demonstrado em seus artigos de opinião, Narcisa reflete acerca dos direitos das mulheres e pessoas escravizadas, além de assumir outras posturas na literatura, alcançando grande projeção em todo o Brasil. Nebulosas (1872), único livro publicado, é um exemplo dessas preocupações, versando também os sentimentos e a exaltação à natureza.

 

Por que sou forte

 

Dirás que é falso. Não. É certo. Desço /Ao fundo d’alma toda vez que hesito...
Cada vez que uma lágrima ou que um grito /Trai-me a angústia - ao sentir que desfaleço...
[...]

É que há dentro vales, céus, alturas, /Que o olhar do mundo não macula, a terna
Lua, flores, queridas criaturas, /E soa em cada moita, em cada gruta,
A sinfonia da paixão eterna!... /- E eis-me de novo forte para a luta.

 

Cecília Meireles (1901-1964), com temas recorrentes sobre o amor, a mote, o tempo e a eternidade, primeira escritora brasileira a se tornar realmente famosa no meio literário. Tema que estão evidenciados em Vaga Música e Mar Absoluto. Com apenas 18 anos, Cecília se integra ao mundo editorial. Os poemas, romances, literatura infantil e textos jornalísticos estão presentes no seu vasto currículo premiado.

 

Mar Absoluto (fragmentos)

 

Foi desde sempre o mar, /E multidões passadas me empurravam
como o barco esquecido.

[...]

Então, é comigo que falam, /sou eu que devo ir.
Porque não há ninguém, /tão decidido a amar e a obedecer a seus mortos.

[...]

 

            Falando de escritoras, refiro-me a Mariana Luz (1871- 1960), poeta maranhense da cidade de Itapecuru Mirim, que se pode observar na sua escrita, os traços da escrita de Narcisa Amália, Maria Firmina dos Reis e outras autoras brasileiras. Com apenas uma única obra publicada, Murmúrios, essa obra passeia por temas melancólicos de amor e dor, vida e morte, além de traços religiosos. Entre o preconceito e a invisibilidade, Mariana Luz, ainda assim, consegue ser a 2ª mulher a entrar para a Academia Maranhense de Letras (1949). Isolada na solidão de seus dias, Mariana merece reconhecimento e uma reparação histórica, por seus escritos de valor imensurável na literatura do Brasil.

 

Supremo Amor

(Mariana Luz)

 

[...]

Se te perdesse, ó Deus, quantas angústias,

Que martírio cruel não sofreria

Meu pobre coração que te ama tanto

E cujo afeto aumenta dia a dia.

[...]

 

O mundo literário atual do Brasil está repleto dos vários Gonçalves Dias, nos dias atuais. O romântico que lateja nos corações avassaladores, no amor à natureza e às diversas causas: indígenas, feminicídio, valorização do negro, da mulher, das relações de gênero, enfim, nos que punge e dilacera, os arrancando do ostracismo presente na vida de poetas e romancistas famosos ou anônimos escritores brasileiros e leitores compulsivos.

 

Ao observar os compositores das músicas do Bumba-meu-Boi maranhense, os trovadores, os repentistas, os cordelistas na nossa região nordestina, vejam que está presente em algum ponto expresso ou nas entrelinhas, os traços de Gonçalves Dias, o amor à pessoa amada, a saudade, o espírito de luta e contemplação, a condição do poeta lírico-amoroso, indianista, também presente nas nuances dos autores e autoras maranhenses.

 

Urrou de boi

 

Lá vai meu boi urrando, subindo o vaquejador

Deu um urro na porteira, meu vaqueiro se espantou

E o gado da fazenda com isso se levantou

Urrou, urrou, urrou, urrou,

Meu novilho brasileiro, que a natureza criou...

[...]

 

(Mestre Bartolomeu dos Santos, o mestre Coxinho, 1972)

  

Passando pela geração dos novos poetas líricos-romântico maranhenses, o que dizer dos escritores itapecuruenses, nas mais diversas escolas da literatura brasileira, como, Assenção Pessoa, Teotônio Fonseca, Moaciene Lima, Samira Fonseca e tantos que ainda nem sequer conseguiram publicar seus escritos? O Maranhão, traz a marca do Brasil linguístico, protagonista da poesia e de grandes poetas. Inserido nesse contexto, Itapecuru Mirim, cidade mais que hospitaleira, é a cidade dos mais diferentes Gonçalves Dias, na poesia, no romance, nas diversas formas de expressão romântica, escola mais vivida por suas leituras e seus leitores. Essa geração contemporânea traz o reflexo das escolas literárias anteriores, mas, sem se perder do tempo de agora. Ainda, nesse contexto podemos encontrar os nossos Gonçalves Dias nas grandes profissões de advogados, jornalistas, etnógrafos e teatrólogos...

 

Tudo passa. Tudo fica. O vento passa. E leva tudo.

Mas a obra permanece.

E faz surgir futuros Gonçalves Dias, todos os dias.

 

 A Academia Itapecuru Mirim e a Prefeitura de Itapecuru Mirim promoveram a 6ª Festa Literária de Itapecuru Mirim (FLIM), nos dias 8,9 e 10 de novembro de 2023.  O tema deste ano foi: Os duzentos anos de Gonçalves Dias.

Alguns registros dessa linda festa.












 Assenção Pessoa, Professora, escritora, poeta. Membro da ACADEMIA ITAPECURUENSE DE CIÊNCIAS LETRAS E ARTES (AICLA)